sábado, 23 de janeiro de 2010

Escolhas

Houve, uma vez, um pardal que tinha quatro filhotes, num ninho de andorinha. Suas asas mal se tinham coberto de penas e eles, temerariamente, achavam que já podiam voar; alçaram vôo e foram-se, levados pelo vento, sempre direitos e sem cair.

O pai ficou muito amargurado e queixava-se de que os filhos o tinham abandonado, antes que ele pudesse aconselhá-los e ensiná-los como se precaverem contra as ciladas e perigos do mundo.

Assim que chegou o outono, muitos pardais se reuniram em bandos num campo de trigo. O pai encontrou entre eles os quatro filhos; então, muito feliz e satisfeito, reconduziu-os para casa.

- Ah, meus filhos queridos, que terríveis preocupações me causastes neste verão! Por quê saístes assim ao vento, sem nada me dizer? Escutai bem as minhas palavras, sêde obedientes a vosso pai e tende muito cuidado. Pássaros pequeninos, como vós, estão sujeitos a graves riscos!

Dirigindo-se ao filho mais velho, perguntou-lhe onde havia passado o verão e de que se havia nutrido.

- Eu permaneci sempre nos jardins, catando larvas e insetos, enquanto não amadureceram as cerejas.

- Ah, meu filho! – disse o pai – a fartura é uma coisa boa, mas é também perigosa; porquanto, procura ter o máximo cuidado daqui por diante, especialmente quando certa gente anda pelos jardins munida de longas taquaras verdes, ocas por dentro e com um buraquinho na ponta.

- Sim, meu pai; mas se no buraquinho da taquara tiver uma folhinha verde grudada com cera? – perguntou o filho.

- Onde viste isto, meu filho?

- No jardim de um negociante – respondeu o filho.

- Oh, meu filho! Quem diz negociante diz tratante. Se estiveste entre pessoas da sociedade, terás aprendido a diplomacia; procura fazer bom uso dela, mas não confies demasiado em ti próprio.

Em seguida, dirigindo-se ao segundo filho:

- E tu, onde estiveste?

- Eu estive na corte! – respondeu este.

- Pardais e outros pássaros inexperientes não ficam bem nesses lugares, onde só há ouro, veludos, sedas, armas e couraças, gaviões, corujas e falcões; para vós o melhor lugar é perto das estrebarias. Ali sempre esparramam alguma aveia e se bate o grão; portanto, pode-se viver em paz e come o grãozinho cotidiano sem perigo.

- Sim, meu pai! – disse o filho – mas se os criados das cavalariças armam arapucas e escondem laços e armadilhas no meio da palha, muitos passarinhos ficam lá presos!

- Onde viste isto?

- Na corte; justamente entre os cavalariços.

- Ah, meu filho, quem diz cortesão diz alma tortuosa. Se na corte estiveste com os fidalgos, sem teres perdido nem uma pena, então aprendeste o bastante para te defenderes da vida. Mas não deixes de olhar bem em volta de ti; pois, muitas vezes, os lobos comem até mesmo os cãezinhos espertos.

O pai chamou o terceiro filho e perguntou-lhe:

- Onde é que foste tentar a sorte?

- Pelas estradas e caminhos; remexendo a terra e os buraquinhos, sempre encontrei o meu grãozinho.

- É sem dúvida um bom alimento – disse o pai – todavia, fica bem atento e olha para todos os lados; principalmente, se vires alguém abaixar-se para catar uma pedra; não fiques esperando, senão não vais longe.

- É verdade – respondeu o filho – mas se alguém já tiver a pedra dentro do bolso ou dentro da camisa?

- Onde viste isso?

- Lá com os mineiros, querido pai; eles sempre levam pedras quando saem com os seus carros.

- Artesãos e mineiros são cérebros de invenções. Se estiveste com os mineiros, então viste e aprendeste alguma coisa.

- Vai, podes ir; mas fica atento e cauteloso, pois os mineiros tanto matam o pardal, como o astucioso.

Por fim, o pai inquiriu o filho caçula:

- Tu, meu querido caçula, sempre foste o mais tolo e o mais fraco. Fica comigo, o mundo está cheio de pássaros perversos, de bicos aduncos e garras compridas; nada mais fazem do que armar emboscadas aos pássaros menores para depois devorá-los. Fica pois com os teus semelhantes e contenta-te em apanhar aranhas e larvas nas árvores e nas casas; assim, viverás feliz muito tempo.

- Oh, meu querido pai, quem vive sem causar danos aos outros pode viver longamente. Não há gavião, abutre, águia ou milhafre que lhe possa fazer mal; principalmente se ele, todas as manhãs e todas as noites, após ter achado honestamente o alimento, se recomenda ao Criador, que criou e sustenta todos os pássaros dos bosques e dos campos e que ouve a oração de todos, até mesmo a dos pequenos corvos; porque, contra a sua vontade, não cai no chão um pardal ou um tico-tico sequer.

- Onde aprendeste isso?

O filho respondeu:

- Quando aquela forte ventania me arrancou do ninho, fui parar numa igreja e lá, durante todo o verão, cacei moscas e aranhas nas janelas, e ouvi pregar essas máximas. O pai de todos os pardais me alimentou durante o verão e me preservou de qualquer desgraça, inclusive dos pássaros vorazes.

- Por minha fé! Querido filho; se te abrigas nas igrejas e ajudas a exterminar aranhas e moscas, louvando o bom Deus como os pequenos corvos, recomendando-te sempre ao eterno Criador, estarás bem, mesmo que o mundo inteiro esteja repleto de pérfidos pássaros ferozes.

- "Recomenda-te ao Senhor,
cala, sofre, espera ora;
sê prudente a toda hora,
tem fé e tem indulgência,
conserva pura a consciência
e terás Deus como Protetor!"

* * *

Tudo na vida é resultado de escolhas que fazemos. Não se pode escolher algo sem abrir mão de outras tantas coisas. Também não se pode escolher algo sem estar certo de que haverá uma série de consequências decorrentes desta escolha. Trocando em miúdos: cada vez que fazemos UMA escolha, apagamos da existência uma série de coisas, e trazemos à luz um grupo de coisas que de outro modo não existiria. O exemplo clássico é o genético: quem seria você, se seus pais não tivessem em determinada hora decidido deitar juntos? Você continuaria sendo a mesma pessoa se a sua mãe tivesse escolhido para você um outro pai? Nas características físicas, ao menos, podemos dizer com tranquilidade que muita coisa mudaria.

Podemos, nas escolhas morais e existenciais, dizer a mesma coisa. Minha mãe sempre me dizia que o ladrão de banco começa roubando moedas. Nunca houve relativismo moral em nossa casa, nada era mais ou menos errado. Nenhuma graduação de mais ou menos pior era permitida, pois nossos pais sempre nos ensinaram que bondade e maldade é questão de escolha e de hábito. Nós nos acostumamos a sermos bons ou maus. Então, o que é errado – desde pegar uma moeda de 10 centavos da bolsa de moedas da mamãe sem pedir até matar um ser humano – é errado e pronto.

Da mesma forma, tudo que é certo é certo, não importa o quanto seja pequenino. Aprendemos na nossa casa que nada é pequeno demais para ser ofertado e que as oportunidades de fazer gentilezas jamais devem passar desapercebidas. Minha mãe era mestra em pequenas gentilezas que tornavam nossas vidas mais confortáveis e felizes. Dia do aniversário era café da manhã na cama, se estávamos doentes, lá vinha uma comidinha favorita... todas as coisinhas em que quase ninguém pensa, mas que – quando estão lá – fazem o nosso dia-a-dia uma delícia.

Meu pai tinha um chefe que estava morando sozinho com a mulher em Brasília, porque seus três filhos já estavam casados e moravam no Rio. O espaçoso apartamento funcional era terrivelmente vazio para o casal, acostumado no Rio a ser visitado por filhos e netos. Lá ia minha mãe preparar uma gostosa mesa de lanche, colocar a melhor louça na mesa, para que o casal não sentisse a solidão do domingo à noite. Fazer estas pequenas gentilezas – a própria capacidade de enxergar a necessidade delas – é um hábito que se cria a partir de uma escolha. Não é algo NATURAL. Muito pelo contrário, requer um olhar para fora de si que é totalmente anti-natural. É um tipo de “escolha de personalidade”.

Hoje em dia há um culto estranho ao “natural”, como se este qualificador fosse o suficiente para tornar o qualificado algo bom. Céus, algumas canárias que eu tive comiam seus próprios ovos, e lobos matam e comem seus filhotes mais fracos. Tudo natural. O homem levou tanto tempo para descer das árvores, andar ereto, construir sua casa e sua cultura, e de repente faz-se uma “ode ao natural”, que parece querer mandá-lo de volta ao período em que se balançava pelo rabo.

Eu não acho que “natural” seja sinônimo de bom. Acho que a maior parte das melhores coisas produzidas pelo ser humano nada tem de natural. Transformamos a natureza e cultura, e procuramos ao longo de milênios refinar e melhorar esta cultura. Descobrimos na natureza o sinal da presença de Deus, e lentamente trilhamos o caminho do conhecimento deste Deus, até que Ele mandou-nos seu filho para que estreitássemos de uma vez por todas este relacionamento.

Esta é minha principal escolha. Achar que o caminho para Deus é o melhor e o mais desejável. Que devemos guiar o que fazemos por esta convicção de que somos filhos de um só Pai, e que temos de nos tratar uns aos outros como minha mãe me ensinou, enchendo o próximo de pequenas delicadezas. Tornar nossa vida em comum mais doce. Porque somos todos da mesma família. Mas é minha escolha, diante de um milhão de escolhas diferentes que as pessoas fazem todos os dias. Algumas pessoas escolhem ser gentis com as pessoas que amam e malvadas com todo o resto. Outras decidem exatamente o contrário. Outras escolhem usar o próximo como escada para a subida até algum patamar de poder e fama terrenos.

São escolhas. Como escolhas, têm consequências. Vejam o conto dos irmãos Grimm, como lida com as escolhas. Os quatro pardaizinhos foram lançados para o mundo contra a sua vontade, e sem nenhuma escolha. No entanto, cada um deles – ao se dar conta de que tinha de cuidar de si – escolheu um caminho diferente para fazê-lo. São uns caminhos bem emblemáticos, se vocês prestarem atenção. O primeiro ficou no jardim dos ricos comerciantes – escolheu o poder econômico; o segundo foi para a corte – escolheu, por sua vez, o poder político; o terceiro escolheu ficar no mundo, e encontrou os mineiros – aproximou-se do saber científico e tecnológico. O último escolheu a proteção de Deus.

Dentro de cada uma destas escolhas, o pai salienta os perigos. Os filhos concordam, sim pai, é isto mesmo. Em cada uma das três primeiras escolhas, existem armadilhas que podem destruir os passarinhos. Mas o quarto filho – justamente o mais fraco, veja bem que interessante – se entregou à proteção divina, e a este o pai não tem ressalvas a fazer. O pequenino passarinho estava na gigante mão de Deus, e assim nada podia alcançá-lo.

Diz o pai:

“Recomenda-te ao Senhor,
cala, sofre, espera ora;
sê prudente a toda hora,
tem fé e tem indulgência,
conserva pura a consciência
e terás Deus como Protetor!”


Não há nada de natural neste conselho. Ou melhor, há algo nele de supranatural, especial, que torna a escolha deste pardal algo que o pai não apenas não reprova ou ressalva, mas que abençoa. É certamente o melhor caminho de todos na opinião do pai pardal. Não há nada no poder econômico, político ou científico que não possa nos ser dado diretamente pela mão de Deus. E os perigos do orgulho, da maldade, das garras e bicos aduncos, estes não existem para aqueles que estão protegidos por Deus.

Bendita época em que viviam os Irmãos Grimm, onde esta verdade era tão patente que estava presente mesmo nas histórias de criança.

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